sábado, 30 de agosto de 2014

Sopre com fé

He who binds to himself a joy
Does the winged life destroy;
But he who kisses the joy as it flies
Lives in eternity's sun rise. 
(Ethernity, William Blake)
Antes de começar a ler, caro leitor, cara leitora, sugiro um acompanhamento. Dê o play no vídeo e boa leitura. Se tiveres a oportunidade, um vinho tinto também cairá bem.



É verdade que um livro não se julga pela capa. Mas, é verdade também que a capa é um potencial critério para incluir em sua cesta de compras quando passeámos em uma livraria em busca de livros, embora nenhum em específico. E, se há uma loja que tenho coragem de acompanhar minha mãe, é de livros. As demais, prefiro tomar um gelado e andar pelos corredores do centro comercial.


E foi numa dessas que mostrei entusiasmado a minha mãe, Mozart na Selva – Sexo, Drogas e Música Clássica de Blair Tindall. Um título para lá de autêntico, a transmitir a mensagem, sexo e drogas não são méritos do rock’n roll, apenas. Uma capa lindíssima, ilustrada por Victor Juhasz, com vários Mozarts com diversos instrumentos e uma mulher nua a segurar outro instrumento desconhecido em meio à selva rodeada por prédios. Mais tarde, associei que os prédios eram de New York, a bonita era a escritora e o intrumento era o oboé, “um vento doente que nunca sopra bem”, uma anedota do comediante Danny Kaye.

O oboé era desconhecido até para Tindall quando este foi escolhido para ser o seu instrumento. Em 1971, a Escola Primária de Carolina do Norte ganhou alguns instrumentos e o líder da banda optou por distribui-los alfabeticamente, pelo último nome. Sobraram o oboé e o fagote, do tamanho de um poste, para Blair. “Eu fico com o mais pequeno”, e assim nasceu uma história para lá de aventurosa, repleta de incertezas e frustações ao longo das vitórias naturais de quem é competente e não foge à luta.

Blair Tindall e o oboé (foto de Christian Steiner)

Blair traz uma séria e detalhada investigação jornalística sobre os bastidores e os fossos das orquestras sinfônicas. Aponta os erros crônicos das orquestras “beneficentes” (nos EUA, uma sinfônica é classificada de beneficência pública, tal qual hospital público, biblioteca ou museu), desde as suas origens, diante da vontade da América tornar-se europeia. Explicita a diferença salarial entre os executivos, maestros e até solistas para com os demais músicos das sinfônicas, que recebiam uma fração do primeiro grupo. E vai além ao apontar o dedo em suas próprias feridas, quando revela seus empregos conquistados em troca de sexo e o seu uso do álcool e de medicamentos para lidar com o fosso das orquestras. Para muitos músicos renomados, Tindall fez o melhor trabalho que evidencia a decadência da música clássica atual.

“Por que é que existem estes CD’s todos da mesma obra? Será que são assim tão diferentes?” perguntou um rapaz ao seu amigo quando encontraram Mozart, Mozart e mais Mozart numa loja. Todos, com a gravação da sinfonia Jupiter, apenas uma das mais de seiscentas obras do compositor. Tindall precisou acompanhar esta cena de dois desconhecidos que não sabiam nada de música clássica para compreender que “estava numa indústira narcisista que ficara parada no século XIX”. Curiosamente, eu também já fiz estas perguntas em uma loja de CD’s.

Evidentemente, ao longo do livro de 328 páginas, enriqueci meu conhecimento musical acerca do oboé e da música clássica. Um legado fantástico para quem almeja a música clássica. Mas, o que mais chama a atenção deste escriba, um leigo em música clássica, foge ao tema central do livro. É a história da vida desta oboísta que ficará em destaque.



Blair Tindall chegou próximo de seus 40 anos de idade a sentir-se incomodada em relação à sua frustração artística profissional, à sua insegurança financeira e ao caos pessoal que sua vida tornara. Eram tão frequentes e pertubadoras estas incertezas que em diversos momentos vinham-lhe pensamentos depressivos que aumentavam ainda mais esta interrogação. Certa vez, durante uma gravação da trilha sonora do filme Snake Eyes, ao visualizar os arcos dos violinos subirem e descerem, Blair lembrara de uma cena de Ben Hur onde escravos de galés remavam sem terem ideia nenhuma para onde estavam a ir. Qualquer semelhança com o profissional pesquisador no Brasil é mera coincidência, ou não!

Baseada em testes vocacionais que fizera, Tindall abandonou um salário de 82 mil dólares com seguro saúde, pensão e horário flexível para ingressar na faculdade de jornalismo com poucos rendimentos e um futuro mal pago à vista. Era um desejo interior de sentir-se útil, de provar a si mesma que possuía outra habilidade senão a música e conseguir empregos pelo seu valor e não pela cama.

Ironicamente, sua última noite em NY antes de rumar à Stanford University, foi chamada para ser, o que até ali lutara, oboísta principal da Ópera de Nova Iorque. Em mais de um quarto de século, Blair dedicara à música e o máximo que conseguira em sinfônicas fora ser oboísta secundária em freelances. Blair nunca havia tocado a ópera Don Giovanni de Mozart e, por ao menos uma vez, tinha posse de um bocal fantástico (os bocais de oboé raramente são bons, pois variam de intrumentista e de intrumento, obrigando cada músico a fazer o seu com bambu). 
“A música saiu naturalmente e cheia de expressão, e todos os outros instrumentos responderam. Era uma elegia apaixonada pela morte da minha carreira musical”
escreveu em seu livro. É possível perceber a tristeza misturada com o prazer e a convicção de Blair como quem diz, deu pra ti, baixo astral. Mais tarde, no camarim, um violinista dissera-lhe: 

- Todos esses anos. Como é que nunca soubemos que tocavas tão bem?.

Entretanto, Blair não se deixou levar e “sabia que a noite tinha sido apenas uma dádiva isolada, uma ameixa perfeita de uma árvore que dava pouca fruta”. Vou para Stanford, tchau!

Tindall foi a mais velha de sua turma de jornalismo, e entrou de cabeça na sua nova carreira com um estágio no jornal da zona com um salário de 15 dólares a semana, que a fez “torná-la humilde”. Amou a sua vida da escrita, que incluía fazer críticas de exposições e guiar pela costa da Califórnia escrevendo sobre lagos naturais e passeios para a Sierra e foi colunista do New York Times. Atualmente, Blair exerce a profissão de jornalismo e de músico em part-time. Com esta escolha, Blair passou a gostar de tocar oboé, uma vez que já não tinha de ser músico por obrigação.

Enquanto lia o livro, diversas vezes peguei-me com os mesmos questionamentos. Onde estarei nos meus 40 anos? A vida está a passar, e para onde estou a remar? Certa vez, li um blog de uma neurocientista que questionou: Você quer mesmo ser cientista? Assim como Tindall, a blogueira Herculano-Houzel expõe os bastidores de uma "pseudo-profissão", porque o ofício pesquisador registrado, carimbado, avaliado e rotulado no Brasil é raro, se quiser voar. E os questionamentos que esta colega aponta em seu post são naturais de um aluno de doutoramento, especialmente conforme aproxima-se o limbo. Mais tarde, ela rascunhou uma proposta de reforma, provavelmente, ao ser exorcizada por fazer uma campanha anti-pesquisa no Brasil, o que não é verdade. Veja aqui

O que eu posso dizer hoje ao meu coração? Bem, nunca é tarde para segui-lo desde que ande com fé, que a fé não costuma falhar. Ainda que na próxima esquina eu sofra uma metamorfose, tipo Raulzito, baby. Exemplos não me faltam, um deles muito próximo. Minha mãe é licenciada em História, ex-pequena empresária de turismo ecológico, ex-proprietária de oficina de jipes, atual gerente em oficina mecânica da Troller em Angola e com aspiração a ser confeiteira em Portugal.

Fica aqui o meu registro a Blair Tindall por esta obra valiosa para um leigo de música clássica, inclusive. Obrigado!

Quer ouvir mais oboé, como eu? Aqui tem mais uma sugestão


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