quinta-feira, 19 de julho de 2012

Sessão pipoca - Quase Deuses

Fazia tempo que não assistia a um filme cujos detalhes foram tão cuidadosos. Quase Deuses (2004) é um longa metragem (110 min) belíssimo não apenas pelos fatos reais em que se baseiam. É rico em passagens históricas e traz temas intoleráveis na década de 30 nos EUA e que, frequente e infelizmente, ainda avistamos. Quase Deuses nos leva a reflexão do quão pouco a humanidade diferiu quanto suas atitudes há quase um século.

A queda da bolsa de NY em 1929 obrigou os “homens do poder” a transferir a conta da dívida a quem menos podia com ela. Nesta conta, muitos trabalhadores foram demitidos, inclusive, para a sorte da ciência, um hábil marceneiro. Porém, o marceneiro Vivien Thomas, que tinha o sonho de ser médico, logo foi admitido por uma clínica médica para ser faxineiro. O garoto esperto enxergou uma daquelas oportunidades que a vida nos oferece.

Vivien é nome de mulher.

Sim, sua mãe estava certa que viria uma menina que até nome já tinha e, quando viu a natureza contraria-la, optou por não mudar.

Aos poucos o cirurgião e chefe de Thomas, Dr. Alfred Blalock, enxergou a inteligência e a destreza manual privilegiada do negro. Vivien era dedicado ao que fazia, assim como na madeira, talhava os estudos concomitantemente ao trabalho e logo conquistou a confiança do doutor. Vivien passou a ser o seu braço direito, cérebro e amigo do doutor branco e ganhou promoção a técnico do laboratório de cirurgia experimental, um afronte ao pensamento racista fortemente enraizado nos EUA. Nem nas universidades não era diferente. Quando Blalock foi transferido para a universidade Johns Hopkins de Baltimore, em 1943, teve de ser registrado na universidade como faxineiro, não se permitia outro cargo aos afrodescendentes.

Aliás, ambos chegam para trabalhar num laboratório onde nada há. Um belo e instigante exemplo de quem é movido por desafios. Começar o trabalho num local onde já há toda uma estrutura é ótimo. Mas quem já teve a oportunidade de construir um ambiente com seriedade, suor e colher com o tempo o crescimento e o reconhecimento é mais gratificante. E assim, Blalock e Thomas deram vida ao laboratório abandonado a poeiras e o colocaram num cenário mundial com o feito de realizarem a primeira cirurgia cardíaca em humanos da história, e mais, em um bebê.

Where you see risks, I see opportunity. (Blalock)

Quando vi os comentários do diretor de cinema Taylor Hackford em Ray (outra película belíssima) soube da dificuldade de produzir filmagens de época. Claro, a cidade muda drasticamente, como reproduzir New York em 1950? Em Ray, Hackford revela que algumas filmagens foram de acervos reais, até de outros filmes. Em Quase Deuses também assistimos cenas reais da época, que se destacavam por serem em preto em branco. Cenas como militares a embarcar para a segunda guerra, a guerra do Vietnã, John Kennedy, Malcom X, Martin Luther King. Parte destas cenas de acervo ilustra a separação dos “colored” nos EUA. Havia estabelecimentos comerciais, banheiros, assentos no final do ônibus, etc, exclusivamente para negros. E nesta passagem há uma sacada interessante. Enquanto os negros dançavam num bar, a câmera dá um close nas mãos de um negro que toca piano. O filme volta a ter cores, e assim, nos induz a acreditar que surgiria uma cena de Vivien. Mas não, é uma festa da elite branca. Seria a música a primeira barreira rompida dos colored? Difícil predizer, mas certamente contribuiu. O próprio Ray Charles foi banido do seu estado natal, Geórgia, por se recusar a tocar apenas para brancos.

O filme também tem algumas risadas, uma delas, quando Blalock consegue na universidade que Vivien fosse registrado como técnico cirúrgico. Ele visita a casa de Thomas e diz, Consegui a tua promoção.

- Foi promovido para o que já é!

Disse a Sra Clara Thomas, uma companheira incrível do cientista não diplomado. Aliás, esse papo de diploma é tão estranho ainda hoje. Uma vez ouvi no cursinho pré-vestibular, Quem faz a universidade é o aluno, não a instituição. Pura verdade e Vivien é a prova de que habilidade e conhecimento não são exclusividade da faculdade. Até para sonhar a ciência é necessário o feeling. E o técnico foi capaz, desvendou um enigma num simples sonho. E, não há novidade que a ciência também avança com sonhos, August Kekulé (1829-1896) que o diga. Foi o químico alemão que propôs a representação gráfica do benzeno, e em 1865 confessou que suas teorias estruturais foram-lhe reveladas em um sonho. Isso, repito, em 1865.

“Eu estava sentado à mesa a escrever o meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente dos meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Uma das serpentes tinha filado a própria cauda e a forma que fazia rodopiava trocistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse produzido um relâmpago, acordei, e desta vez passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade... mas também vamos ter cuidado para não publicar nossos sonhos até que eles tenham sido examinados pela mente desperta" (Friedrich August Kekulé, 1865.)

Claro que desde sempre, está cravado na humanidade a religião. E como trata-se de um filme de ciência ela não podia passar batida. Claro também que no filme ela representa, junto com a maioria dos pesquisadores da época, um entrave ao avanço da ciência. Colegas de Blalock e o padre católico insistiram veementemente no aborto de suas pesquisas para operar o bebê com a síndrome do bebê azul, nome dado aqueles que possuiam a Tetralogia de Fallot (má-formação congênita do coração composta de quatro elementos: defeito do septo ventricular, obstrução da via de saída do ventrículo direito, hipertrofia ventricular direita e posicionamento da aorta acima do defeito no septo ventricular) que resultava na circulação de um sangue pobre em oxigênio, um sangue azul. Mas, como o cirurgião era movido por desafios e também por uma ambição oculta, revelada no longa, ele foi adiante. E para nossa surpresa (será?), foram estes também que o idolatraram pós o sucesso cirúrgico.

E é assim, o filme Quase Deuses recheado de detalhes. Se não viu ainda, fica a dica, talvez como obrigatório para quem estuda ciências biológicas. Um abraço e até o próximo momento!

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quarta-feira, 4 de julho de 2012

O romantismo dos filmes antigos.

Texto por José Monserrat.

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Gosto de olhar filmes antigos.

Nada mais valente do que o olhar de Humphrey Bogart ou Gary Cooper em variados tons de cinza.
E nada mais belho do que os olhos de Ingrid Bergmann em Casablanca, apos do ultimo adeus a Rick.
Os filmes antigos eram feitos por pessoas que sabiam de cinema.
O tempo foi passando, todo mudou. Agora temos efeitos especiais digitais, explosões portentosas e atores virtuais.
É de praxe os diretores terem experiência em rodar videoclipes sem se dar ao trabalho de pensar que videoclipe e filme são universos completamente diferentes.
Eu gosto dos filmes antigos... em preto e branco.
E tenho nojo dos novos filmes de Hollywood tão coloridos, cheios de azul e amarelo.
Tomara que o espírito dos filmes antigos acabe ganhando.
Numa rua deserta, cheia de areia no faroeste, onde o mocinho enfrenta ao vilão no grande duelo final.
E, inevitavelmente, como a lei da gravidade, acaba sempre se impondo.
Longa vida ao mocinhos de preto e branco!